segunda-feira, 23 de outubro de 2023

 

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Gosto das palavras esdrúxulas, desde logo a própria, e esta última. Idem. São de entoação difícil (ia escrever pronúncia…). Embrulha-se ali a língua, sobretudo se há uma bela vogal a baralhar a queda no precipício tónico (mais duas), como em período ou em medíocre. Estas duas, coitadas, são das que mais sofrem de agravamento (literalmente) logo desde os bancos da escola. 

Há um certo exotismo nas esdrúxulas (componho a frase com o nome em vez do adjectivo, por questões de parcimónia. Ai!...). As menos comuns valem até, a quem as usa, o epíteto (começo a perder-lhes, às esdrúxulas, a contabilidade na presente crónica… ei! Outra vez?) de arrogante. Mas a culpa também é delas. Quem as manda partilhar a semântica com ‘excêntrico’? (A sério?). 

As esdrúxulas não se encontram só em glossários (bolas…) elitistas, nem encerram só significados desconhecidos, como puérpera ou esquírola. Prestam o seu serviço, por exemplo, ao democrático mundo das flores: dália, estrelícia, crisântemo, begónia, lírio, magnólia, petúnia, antúrio… Mas, ao contrário das outras tónicas, exigem sempre o acento. Talvez este rigor salve algumas, como egípcio, de revisionismos ortográficos (olha, outra!).

Para o que der e vier, as esdrúxulas têm de reserva o seu sinónimo: proparoxítonos. Uma esdrúxula, claro.

©outinhas | maio | 2022



quarta-feira, 11 de outubro de 2023

realidade aumentada

 



[para a Joana]

Ficam curtos os sentidos quando se quedam em mim. É só meio mundo que vejo. E é só quando o divido que o multiplico para a plenitude. Porque a beleza não cabe toda naquela metade. Quanto mais belos a sinfonia ou o texto, mais fico em desassossego; até partilhá-los. Estou, só então, de coração cheio. Como as cores dos montes a sublimarem-se no espelho do Douro.

©outinhas 2023.09.29
fotografia joana.neves.photos


sexta-feira, 30 de setembro de 2022

homenagem

 


Para o meu tio José Coutinhas, que me ensinou a ler e a escrever

Eram raras as ocasiões em que o Senhor Aarão cedia a um pequeno desvio da sua austera rotina. Acontecia sobretudo no verão e nas quartas-feiras equidistantes da visita aos fornecedores do Porto e do frenesim da feira semanal. Pontualmente a Ermelinda, parte da família havia muitos anos, trazia o pequeno tabuleiro com a chávena de cevada-santa e a torrada com a ameaça de manteiga, que o Senhor Aarão tragava atrás do armário expositor. Nunca se permitira comer ou beber em frente aos fregueses; não gostava que os filhos, e depois os netos, comessem um rebuçado que fosse na loja. Especialmente se estivessem outras crianças presentes.

Aliviava-se então um pouco aquela linha tensa do sobrolho, permanentemente dividida entre o ar circunspecto e uma inexplicável angústia. Abandonava o lugar habitual, de pé, atrás da escrivaninha e perto da máquina registadora, e vinha, mãos cruzadas nas costas, sentar-se junto da Dona Ausinda no banco do extremo do balcão, normalmente reservado aos clientes mais fiéis.

Trocavam apenas um par de palavras em voz baixa, das poucas que restavam ao fim de mais de quarenta anos. O olhar de ambos sobre o neto que tentava peneirar o gorgulho de um saco de arroz era, no entanto, o mesmo. Talvez também efeito da calmaria daquela tarde, divertiam-se ambos com a falta de perícia do moço. O Senhor Aarão enrubescendo mesmo um pouco, na tentativa de conter um assomo de riso.

A chegada do representante da fábrica de queijos veio interromper a pausa e repor a compostura. O caixeiro-viajante entrou como era seu costume, com passos grandes mas tímidos e de olhos respeitosamente baixos. O homem levou a ponta do indicador à aba do minúsculo chapéu, inclinando a cabeça que – achava o neto do Senhor Aarão – parecia ela mesma um queijo, demasiado pequena para aquela estatura.

O Senhor Aarão estava já de pé a fazer a encomenda da semana, que o homem-queijo agradeceu com uma pequena vénia e nova correção milimétrica da posição do chapeuzito.

Vai dar uma mão rapaz! O neto do senhor Aarão seguiu apressadamente o homem para ajudar a trazer as caixas da Anglia branca, estacionada na rua perpendicular. Mal ouviu já o “cuidado a atravessar” da avó. A Dona Ausinda decidiu que era hora de retirar a bandeira de pano que ela própria confecionara para proteger o balcão do sol da tarde, na realidade uma desculpa para vigiar os movimentos do neto.

Quando voltaram com as caixas de queijo, traziam também uma novidade que o homem-queijo, então com um ar um pouco mais confiante, apresentou: batatas fritas em pacote, algo com provas dadas no estrangeiro e, portanto, com as melhores perspetivas de êxito no nosso país. O senhor Aarão mostrou que estava bem informado sobre o novo produto e devolveu o vendedor à sua postura respeitosa, tecendo alguns comentários pouco abonatórios daquela modernice. O homem-queijo despediu-se com um balbuciante “numa próxima…”, e foi saindo com uma última vénia. Talvez já não ouvisse a pergunta, meio a brincar, da Dona Ausinda: e quem há-de descascar tantas batatas?

O poente escondia-se já atrás dos plátanos da praça. O Senhor Aarão voltara ao seu posto de comando e o sobrolho à posição habitual.

João ©outinhas

Braga, 2012-07-21

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

 


Nos setentas não tinham ainda sido inventados os canais que viriam a democratizar o consumo de música. Na primeira metade não tínhamos, por cá, sequer “inventado” a Democracia, mas estava a ser (re)inventada a música que faria as delícias duma geração. E veio por aí fora em catadupa. Era a época de Pink Floyd, Yes e Jethro Tull às pazadas. Lá íamos consumindo o que passava na rádio ou desgastando furiosamente um ou outro vinil que um amigo felizardo recebia no aniversário. Algumas discotecas (assim se chamavam as lojas que vendiam discos) tinham umas luxuosas cabines onde, estivesse o caixeiro de boa catadura, nos deixavam ouvir algumas faixas. Era uma boa maneira de passar a tarde. Um amigo meu tinha uma tática para sair airosamente sem comprar nem um single: - tem o LA Woman dos Doors? (que ele sabia esgotadíssimo). Não? Que pena! Voltamos para a semana.
Comprar um disco era missão para ser preparada durante semanas, e levada a cabo por um comando de amigos escolhidos a dedo (not yet "saving it up for friday night"). Numa das vezes em que era eu o “dono da bola”, e estava já decidido o que iria comprar, um amigo impôs-me no último momento um disco que eu não conhecia. Tinha uma capa estranha, e um nome a condizer: Dire Straits. Todos temos uma música (ou várias) que funcionou como game-changer na nossa “formação musical”. Aquela a que de tempos a tempos voltamos com o mesmo prazer. Como aquele pitéu como só a tia lá da aldeia sabe fazer, cujos sabores conhecemos bem, mas que nunca deixa de nos deleitar. No meu caso pode muito bem ser Sultans of Swing. Fica aqui uma “extended version”, só porque nela o Mark Knopfler parece não querer jamais separar-se da guitarra.
Sabemos que a barriga está prestes a soçobrar, mas a tia não para de nos encher o prato.
Em breve nos atacaria a febre do sábado à noite, e uma certa rapariguinha nos alcançaria a descer as escadas do shopping.

©outinhas 2022.04.02

terça-feira, 20 de setembro de 2022


A propósito do projecto do Forte da Ínsua, a TSF entrevistava hoje um homem grande, o Cartucho, que cresceu na ilha, no seio duma das duas famílias que a habitavam sazonalmente. Contou histórias da meninice na que reclama, ainda hoje, como a sua casa. 

À pergunta, que não consigo reproduzir exactamente, mas que foi algo como "eram tempos felizes? ", respondeu o Cartucho:

- Não sei se a palavra felicidade chega! 

Haverá outro poeta que respondesse de forma tão bela?

©outinhas 2022.07.04



segunda-feira, 19 de setembro de 2022


Dependemos duma rede. Individualmente, ficamos em curto-circuito, como neurónios sem sinapses. O que fazemos não ganha dimensão enquanto não levanta voo neste ecossistema. Um livro não nasce quando o escritor começa a colocar as primeiras ideias no papel, e não chega ao fim de vida quando é entregue ao prelo. "Um autor faz uma bela obra e endossa-a, escon­didamente, a outro" escrevia o DN (2014.02.24) a propósito do sublime Adagio de Albiloni do qual bastou uma partícula de ADN sobrevivente para ser, na verdade e muitos anos depois, escrito quase totalmente por Giazotto. 

Uma das composições mais celebradas de Chick Corea (que nos deixou esta semana), Spain (1971), bebe explicitamente doutro adagio, do Concierto de Aranjuez do espanhol Joaquin Rodrigo (1939). Aqui fica o Spain num dueto com a fabulosa Hiromi Uehara. Se a imortalidade da obra de Chick Corea depender da energia, está bem entregue à Hiromi! 

©outinhas 2021.02.12

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Deolinda

 

  ~ Gosto das palavras esdrúxulas, desde logo a própria, e esta última. Idem. São de entoação difícil (ia escrever pronúncia…). Embrulha-se ...