Para o meu tio José Coutinhas, que me ensinou a ler e a escrever
Eram raras as ocasiões em que o Senhor Aarão cedia a um pequeno desvio da sua austera rotina. Acontecia sobretudo no verão e nas quartas-feiras equidistantes da visita aos fornecedores do Porto e do frenesim da feira semanal. Pontualmente a Ermelinda, parte da família havia muitos anos, trazia o pequeno tabuleiro com a chávena de cevada-santa e a torrada com a ameaça de manteiga, que o Senhor Aarão tragava atrás do armário expositor. Nunca se permitira comer ou beber em frente aos fregueses; não gostava que os filhos, e depois os netos, comessem um rebuçado que fosse na loja. Especialmente se estivessem outras crianças presentes.
Aliviava-se então um pouco aquela linha tensa do sobrolho, permanentemente dividida entre o ar circunspecto e uma inexplicável angústia. Abandonava o lugar habitual, de pé, atrás da escrivaninha e perto da máquina registadora, e vinha, mãos cruzadas nas costas, sentar-se junto da Dona Ausinda no banco do extremo do balcão, normalmente reservado aos clientes mais fiéis.
Trocavam apenas um par de palavras em voz baixa, das poucas que restavam ao fim de mais de quarenta anos. O olhar de ambos sobre o neto que tentava peneirar o gorgulho de um saco de arroz era, no entanto, o mesmo. Talvez também efeito da calmaria daquela tarde, divertiam-se ambos com a falta de perícia do moço. O Senhor Aarão enrubescendo mesmo um pouco, na tentativa de conter um assomo de riso.
A chegada do representante da fábrica de queijos veio
interromper a pausa e repor a compostura. O caixeiro-viajante entrou como era
seu costume, com passos grandes mas tímidos e de olhos respeitosamente baixos.
O homem levou a ponta do indicador à aba do minúsculo chapéu, inclinando a
cabeça que – achava o neto do Senhor Aarão – parecia ela mesma um queijo,
demasiado pequena para aquela estatura.
O Senhor Aarão estava já de pé a fazer a encomenda da semana, que o homem-queijo agradeceu com uma pequena vénia e nova correção milimétrica da posição do chapeuzito.
– Vai dar uma mão rapaz! O neto do senhor Aarão seguiu apressadamente o homem para ajudar a trazer as caixas da Anglia branca, estacionada na rua perpendicular. Mal ouviu já o “cuidado a atravessar” da avó. A Dona Ausinda decidiu que era hora de retirar a bandeira de pano que ela própria confecionara para proteger o balcão do sol da tarde, na realidade uma desculpa para vigiar os movimentos do neto.
Quando voltaram com as caixas de queijo, traziam também uma novidade que o homem-queijo, então com um ar um pouco mais confiante, apresentou: batatas fritas em pacote, algo com provas dadas no estrangeiro e, portanto, com as melhores perspetivas de êxito no nosso país. O senhor Aarão mostrou que estava bem informado sobre o novo produto e devolveu o vendedor à sua postura respeitosa, tecendo alguns comentários pouco abonatórios daquela modernice. O homem-queijo despediu-se com um balbuciante “numa próxima…”, e foi saindo com uma última vénia. Talvez já não ouvisse a pergunta, meio a brincar, da Dona Ausinda: e quem há-de descascar tantas batatas?
O poente escondia-se já atrás dos plátanos da praça. O Senhor Aarão voltara ao seu posto de comando e o sobrolho à posição habitual.
João ©outinhas
Braga, 2012-07-21